3.04.2012

Época de descontentamentos

Na época actual uma onda de nervosismo avassala a consciência de todos os povos e até de todos os indivíduos. A vida presente, cheia de descontentamentos, de ansiedades, de desvairadas manifestações e orgias, perturbada por contínuas mudanças, oferece o terreno apropriado para o desenvolvimento das vontades paranóicas e loucas.

Assim como há artistas, poetas, escultores, etc., que julgam ter editado a última palavra do saber humano, também os há que se julgam predestinados por Deus ou indicados pelo «inexcedível» valor pessoal para desempenhar um grande papel, um caminho salvador junto do seu povo e dos seus semelhantes. E, então, todo o tempo é pouco para falar de si, dos seus êxitos, das suas reformas, da sua administração e, em discursos inflamados e, atitudes arrogantes, indicam um «luminoso campo de prosperidades e grandezas.

O paranóico ambicioso não luta mais pelo engrandecimento do seu povo do que pela exteriorização dos seus sentimentos, das suas vaidades. O seu vestuário denotará imponência; os seus gestos serão bruscos e arrebatados; a sua palavra, fácil e cativante. Prometerá o que não tem nem pode dar e arrastará as multidões para onde muito bem lhe aprouver. Esquece muitas vezes os que, na sombra, quase no esquecimento, revolucionaram os processos científicos, sempre humildes, sempre afastados da sociedade. Estes, sim, que são os grandes obreiros da humanidade. Que tudo dão e nada esperam, sacrificando a vida inteira em proveito dos seus semelhantes.

O paranóico político é um exaltado, exagerando palavras e actos. O homem de ciência é calmo e reflectido, auscultando tudo com paciência, vivendo continuamente recolhido, sentindo-se pouco à vontade em frente dos seus semelhantes, não gostando de cortesias nem de manifestações. O político, pelo contrário, sente-se bem apenas no meio de aplausos vibrantes, no delírio das turbas inconscientes e sugestionáveis. O maior perigo do paranóico político está em arrastar o seu povo para a guerra, considerando-a quase sempre um fim legítimo, para satisfazer a sua ambição e realizações desmedidas.

Quando Mussolini prefaciou o Príncipe de Maquiavel, mostrou bem perfilhar a ideologia deste pensador. Maquiavel foi o incentivo das aspirações desmedidas da política dos grandes Estados. Estes, aconselhava ele a Lourenço de Médicis, têm o direito de se tornarem grandes e poderosos, atingindo os seus fins sem olhar aos meios. Todo o homem deve ser, simultaneamente, homem e raposa; homem para medir o perigo, evitando-o, e raposa para escapar aos laços e ratoeiras humanas. Enquanto os demais Estados se iam unificando e tornando vigorosos, a Itália encontrava-se, nessa altura, fragmentada por contínuas lutas intestinas que lhe ensombravam, a sua capacidade de realização. E, então, toda a população da Itália se agrupa em volta das cinco cidades importantes: as repúblicas de Veneza, Florença, o reino de Nápoles, o ducado de Milão e o território da Igreja de Roma.

Maquiavel pôs de parte todas s instituições existentes, rompeu com a palavra eterna do Evangelho, os princípios do direito e até da justiça e tornou-se o primeiro político que encarou o problema das nações pelo lado prático e utilitarista. Considerou o Estado superior aos indivíduos e para que as suas doutrinas não suscitassem escândalo, teve o cuidado de separar a política da mora. Todos os processos seriam legítimos se contribuíssem para o engrandecimento do Estado e a própria religião passaria a ser um instrumento político. O governante teria, segundo os princípios de Maquiavel, de se servir de todos os processos, mesmo da mentira e da iniquidade, para arruinar e derrotar os seus adversários.

O Estado ou devia morrer ou alargar as suas fronteiras. Os estados fracos não tinham direito à existência. Por isso, os dirigentes deviam utilizar todos os processos: força material, argúcia, habilidade, hoje diríamos diplomacia, para se tornarem cada vez mais grandiosos.

Maquiavel fazia, pois, o louvor da guerra: «A única razão lógica que pode explicar uma guerra é enriquecer-se, empobrecendo o inimigo e nenhum outro motivo existe para procurar a vitória e fazer conquista. Enriquecerá com a vitória e a guerra, o príncipe ou a república que tiver aniquilado o inimigo e se apodere dos seus bens». «E quem quiser consegui-lo deve proceder como os romanos que faziam guerras curtas e enérgicas…». O seu método consistia, principalmente, em marchar contra o inimigo logo após a declaração de guerra e dar-lhe a batalha tão depressa quanto possível. Maquiavel ia mais longe ao afirmar: «Sob a pressão do interesse, todas as alianças se quebram… e embora o embuste seja condenável em todos os outros actos da vida, na guerra pode ser louvável e glorioso e, quem vence os seus inimigos com ardis e astúcia, é tão elogiado como aquele a quem a força das armas deu vitória. A maior desgraça de todas as situações a que um Estado pode ser levado é a de não poder aceitar a paz nem prosseguir na guerra… Um Estado que sabe avaliar as suas forças, nunca chegará a isso…

A sede de conquistar é coisa absolutamente natural e corrente, e, quem conquista tendo poder para o fazer, merece louvor e não censura. O que é errado e censurável é que alguém pretenda conquistar a todo o custo, sem ter forças para isso…».

Os condutores de povos são geralmente mitómanos dum ideal, urdindo com subtileza promessas redentoras aos seus povos, e estes só compreenderam a verdade dos factos à beira do abismo, quando resvalam, sangrenta e assustadoramente para a morte. Mitómanos patológicos chegam, talvez, a convencer-se de verdades inexistentes e, maior crime ainda, fanatizam os seus povos para os subverter nessas ideias. Se nestes homens não preponderasse uma mitomania constante, logo que vissem a sua causa perdida, deviam recuar e privar os seus povos de maiores crimes e atrocidades.

Os casos típicos de mitomania, como muito bem observa Battistelli (1), «são mutáveis no humor como os afectos; exagerados em tudo, no amor como no ódio, na alegria como na dor; dotados de uma grande actividade imaginativa e habituados a cavalgar sempre pelo reino do fabuloso e do absurdo; sonhadores pertinazes, e, por isso, sempre inquietos e descontentes com o seu Estado; apáticos e inertes na tranquila vida doméstica mas dotados, pelo contrário, de uma actividade espasmódica fora da sua casa… egoístas no mais elevado grau… mostram-se libertos de qualquer escrúpulo, de qualquer conveniência, e não mais perigosos».

A Europa encontra-se realmente apodrecida, deturpada por diferentes concepções e, a tal ponto, que Gandhi afirmou que dela se afastara o espírito de Deus, predominando apenas o de Satã. Embora as grandes nações europeias constituíssem uma enorme civilização aparentemente majestosa, a alma dos povos ia-se pervertendo e arruinando. Spengler marca-lhe o caminho condenatório e diz: «Europa, estás morta. Vejo em tuas faces as marcas evidentes da decadência. Tuas constituições, a tua democracia, a tua corrupção, as tuas cidades gigantescas, a tua ciência, a tua arte, o teu socialismo, o teu ateísmo, a tua filosofia… constituem os sinais característicos que observei na decadência das civilizações anteriores. Mais um século e a civilização mudará do continente europeu».

Mas se a civilização da Europa sucumbiu ante as devastações criminosas da guerra, estamos certos que a civilização futura irá procurar novos processos, alicerçar-se sob novas bases, elevar-se, desenvolver-se, atingir o zénite rutilante da grandeza, para, no fim, por qualquer processo e levada por quaisquer causas, ruir estrondosamente, enlamear as almas, sangrar os corações humanos… para não fugir à lei inflexível da história: a morte que jamais poupará homens e civilizações.

Não estará a humanidade farta destas contínuas reviravoltas, deste nascer e morrer de civilizações, deste nascer e morrer de pátrias? Qual o fim que nos leva à guerra? Salvaguardarmos a civilização? Que civilização, se a história jamais passa desta barbarização de costumes, destas exterioridades falsas, desta hipocrisia avassaladora e monstruosa?!

Se no mundo há falta de justiça, falta muito mais a sinceridade. A insinceridade e o terror caracterizam o homem presente e tudo parece que os altos desígnios da providência cortaram as suas relações com a terra. Falhamos em tudo: é falsa a política da maioria das nações; são falsas as relações sociais; é falsa a arte, e a literatura é um reflexo embaciado e triste da geração presente, pervertida e cansada.

Se combatermos por uma civilização e nos arrasarem as nossa cidades; se combatermos por uma civilização e nos matarem ignobilmente deixando as nossas mulheres e os nossos filhos no desamparo e na miséria; Senhores, nós não combatemos por uma alta civilização, por um ideal nobre, por uma concepção pura, mas revivemos, por novos processos, os bárbaros ideais que ensopam no sangue, vidas e vidas que por nenhum preço poderão ser resgatadas.

Assistimos ao momento mais trágico de toda a história: a queda da Europa. Vemos este velho continente afogado no martírio e dele, certamente, hão-de ressurgir novas civilizações! Essas civilizações morrerão, por fim, afogadas no sangue e no terror. E dir-se-á que assim como morrem os indivíduos, morrem as nacionalidades e envelhecem e sucumbem os continentes. Uma nova civilização despertará, com maior grandeza, para a vida: América. Mas não se esqueçam os americanos que a sua civilização tem o germe da europeia, e, quanto mais depressa atingir o ponto culminante, mais depressa estará condenada à morte. No decorrer dos séculos, há-de assistir à sua própria decadência, ensanguentar o seu solo e ver correr Amazonas e Mississípi de martírio no seu continente. Novas civilizações despertarão na Ásia e na África e um outro continente terá o mesmo trágico fim.

Oxalá esta guerra tivesse ensinado aos homens o bastante para preservar a humanidade, durante largos anos, porque é impossível por toda a vida, de novas catástrofes, de guerras sanguinárias e ferozes, que os continentes, adubados com o sangue de tantos inocentes, se libertem da esmagadora e tirânica opressão das lutas pérfidas e mesquinhas.

Por Joaquim Carlos

(Jornalista C.T. E. nº. 525)

(1) A Mentira – Arménio Amado – Coimbra, 1943, págs. 221-222.

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