10.20.2010

PROBLEMA DE COERÊNCIA versus COMPORTAMENTO


PROBLEMA DE COERÊNCIA  versus COMPORTAMENTO

A coerência resulta da inteligência e do carácter; na medida em que se compreende o valor duma ideia e se respeitam as suas exigências, é-se coerente.
Na vida humana, o dever é a maior força de obrigação. É meu dever? Cesse tudo o mais; e pode acontecer até que haja de se perder a vida no cumprimento do dever.
Mas há no nosso ser e nas nossas actividades hierarquia ou escala de valores. O corpo é inferior à alma; quando os interesses dos dois são contrários, a coerência manda que se salvem os da alma, se for necessário sacrificar aquela (a pouco e pouco, ou num acto heróico) e exige a coerência que não hesite.
A virtude enobrece, o vício e o pecado avilta; a coerência torna-se palavra vã, se praticamente a ordem for invertida, entronizando o vício e desdenhando da virtude.
O divertimento ou recreação também tem categoria na vida humana. Quando corresponde a uma legítima necessidade psicológica ou fisiológica, é dever. Não pode, porém, consistir em coisa que diminua alguém diante de si próprio, nem diante do próximo sério, nem diante de Deus.
O divertimento tem o aspecto de mais facultativo do que o dever, mais livre, mais directamente dependente da vossa vontade. Mas a liberdade de acção não deve resultar do capricho ou paixão desordenada; quem mais perfeitamente lhe marca os limites e regula o seu uso é a dignidade. Contra a dignidade da pessoa humana, a liberdade não existe, isto é, não é legitima.
É coerência conformar, também nisto, a vida com a doutrina. Este respeito pela escala dos valores deve estender-se a todos os aspectos da vida - individual, familiar, social. É coerência não separar uma da outra a "religião" (que defende a dignidade) e a vida: tal separação seria um desacordo funesto, semelhante ao de separar, no mesmo indivíduo, a alma e o corpo; disto resultaria a morte, ou melhor, nisto consiste a morte.
Assim se passam as coisas na ordem física, assim se na ordem moral. E as consequências da morte espiritual são piores, infinitamente, do do que as da morte corporal.
Afirma-se alguém católico. Acredite praticamente no que diz. É ainda uma questão de coerência. Como o filósofo, podemos observar que não são muitas as pessoas coerentes. Quando encontramos uma, parece-nos consoladora e reconfortante raridade: eu gosto de ouvir de vez em quando um homem que acredita no que diz (1); ouvir e ver, verificar que acredita, pelas suas obras, nas suas próprias palavras. Em Marrocos, um comandante europeu perguntou a um indígena quais os sinais do chefe inimigo; o interrogado respondeu: logo que o vir, sabe que é ele. Quem nos vê, não poderá duvidar de que somos nós? Falar verdade no coração, segundo o salmista, é conhecer-se; falar verdade na vida, é tornar-se conhecido sem disfarce, é ser coerente.
No dever, nos divertimentos, em tudo, importa que sejamos coerentes, iluminando e fortalecendo todas as nossas atitudes pelo mesmo nobilíssimo conceito da nossa dignidade natural e sobrenatural.

Autor: Joaquim M. C. Carlos
Fonte: Jornal LOGOS, edição nº. 21 datada de 1 a 15 de Outubro de 2003, do qual fui seu propritário e Director.
(1) David Hume, filósofo inglês, cit. pelo P. Raoul Plus, em Face à la vie, volume citado, pág. 76.

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