A hipocrisia é apanágio da simulação denuncia-se pelo vício de carácter que apresenta o indivíduo em afectar a piedade, virtude, nobreza de sentimentos que não possui. O hipócrita concentra na alma a dissimulação, o fingimento, a mentira, enfim todos os elementos que lhe mascaram o carácter. Enganar pela aparência é-lhe a súmula moral: ser e não parecer, o lema da vida.
As condições essenciais da fisionomia moral do hipócrita são a doçura, gentileza, os exageros, a aparência, a timidez, a vaidade e sobretudo o alto senso de enganar, torna-se por isto sempre "um homem vil, tímido e dramático e, no exercício da falsidade, vai-se fazendo sempre mais esperto, mais hábil, porque vive, sempre na falsidade e acaba por não saber distinguir o que na verdade sente e o que finge sentir" (Mantegazza).
Simular, mostra-se-lhe a arma predilecta. Há hipócritas em matéria de sentimentos, de amor, honradez, de política, religião, e intriguistas e jeitosos, captam confiança e simpatia da família, dos amigos, dos asseclas, e passam às vezes a existência inteira a ocultar o carácter caviloso e ladino, propenso ao mal, reduto de egoísmos inconfessáveis e obscuros.
O retrato clássico deste estado patológico da alma, patológico sim, porque a alma deve ser feita de límpido cristal, está no Tartufo de Molière. Jamais a pena humana traçou com vida e fidelidade o bosquejo, a figura do simulador malevolente, do jacobeu, santião e carola.
Poucas vezes o teatro do mundo inteiro apresentou figuras mais bem debuxadas do que a do impostor de Molière, e no gesto caricatural da figura, assistimos à expressão psicológica perfeita do hipócrita.
O hipócrita nasce com os seus estigmas essenciais. Desde menino cultiva a mentira, a bajulação, a timidez, as queixas dos irmãos e companheiros, a desconfiança e a maldade desenfreada. Cresce amado, idolatrado de muitos, porém, já odiado das suas vítimas de intrigas e mentiras.
As qualidades no adulto se apuram para o mal. Com a posição inclinada da face, a seriedade santarrona, o olhar velado, talvez aquele de "cigana obliquo e simulado de Capitú", do delicioso livro de Machado de Assis, D. Casmurro, olhos que se não fitam em ninguém, gestos moderados, circunspecção dosada, beatice falsificada, o hipócrita quer enganar a todo o transe o ambiente em que vive, o meio humano que o cerca. E consegue! Porque as artimanhas, as atitudes morais estudadas, as posturas e os gestos, dão-lhe o apuro de arte, como se estivesse sempre a representar diante do público para conseguir êxito feliz e aplausos.
Afirma Mantegazza que a mulher é a mestra consumada da hipocrisia, a senhora do mundo oculto, cabalístico, dramático de tais maquinações sentimentais. É ela que nos engana chorando e sorrindo, com a carícia felina e com os arroubos violentos de desvairados egoísmos.
O mundo de hipócritas é maior do que parece à primeira vista. O epigrama do clássico Guerreiro tratando da Multidão da hipocrisia diz que: "A hipocrisia tem, Uma grande latidão; A mil estados convém, Os hipócritas, porém, De letras mais, que outros são".
É assim, quantos passam na vida por justos, santarrões, honestos, e são ocultos patifes, camafonges de almas, vivem com sorrisos incompletos, atitudes de falsa piedade, sofredores artificiais, a iludir os compares, o círculo dos amigos, a atmosfera familiar!
A astúcia e a simulação são artes de viver. Muitos hipócritas perdem a mascara cedo, outros a conservam com a habilidade cuidadosa de enganadores profissionais. Há tanta complexidade patológica na alma do hipócrita, que o analista paciente esgotaria talvez longas horas de estudos para dissecar fibra a fibra, dobra a dobra, a psique dos Tartufos.
A alma do Hipócrita é de si um poço à superfície da face, no sorriso franco e no olhar claro e sereno, como a serpente à espera do momento certo para arrebatar a sua vítima. O mundo está minado destes seres altamente perspicazes e hábeis no engano.
Por Joaquim Carlos
(Jornalista C.T.E. nº. 525)
Nenhum comentário:
Postar um comentário